Quando me disseram que existia na cidade um homem de 104 anos, lúcido e
firme, cheguei a duvidar. Acostumado com o espetáculo diuturno da queda da
arvore humana antes de ter ultrapassado meio século de existência, era de ficar
espantando com a sobrevivência de uma criatura que já havia dobrado uma centena
de anos e que se mantinha de pé, afrontando a lei sancionada pelos trópicos.
O São Tomé que vive dentro de nós todos impeliu-me á procura do
Matusalém. E o vi e o toquei com estes olhos que a terra um dia hão de comer.
Camilo Antonio Felizardo
Preto. Nascido em Santa Rita do Sapucaí. Filho de africanos, da costa da
África, vieram seus pais num daqueles
cargueiros humanos que enchiam as noites
de gemidos e angustias, cujos ecos existem vivos e terríveis nas estrofes
imortais do vate baiano.
Carapinha branquinha como algodão. Olhos com a bruma seca do tempo,
gastos de tanto uso. Rosto liso, sem uma ruga, como se estivesse vivendo uma
outra infância. O cinema retrospectivo da memória funcionando perfeitamente,
numa projeção clara, andamento regulado, sem um tropeço ou falha
As palavras lhe saem da boca centenária com a mesma facilidade com que
brotam os sons de cordas vocais tangidas pelo vigor da idade.
Camilo Antonio Felizardo tem 104 anos no duro. No confronto das datas e
dos fatos nós nos convencemos da sua longevidade.
Padre Zé Bento
O Padre José Bento era um rapagão bonito e desempenado, amigo de toda
gente, trabalhador e piedoso. Gostava de tratar a terra, interessando-se sempre
pelas plantações. Possuía um sitio perto da cidade e sempre ia vê-lo, montado
no seu cavalo fogoso.
-Me lembro do Padre Zé Bento, montado no seu alazão, chamando a atenção
de todo mundo. O Padre era muito importante.
Mas, o senador José Bento era um temperamento nervoso e vibrátil,
causador da sua brilhante atuação na vida política de nossa terra e do país, como
de sua morte em situação tão trágica.
O Assassinato do Padre José Bento
Uma questão de divisas de terras e de roças de milho entre o Padre José
Bento e seus confrontantes, os irmãos Baltazar, Jacinto e Dionisio, estabeleceu
uma surda mal-querença entre eles.
-Os três irmãos eram gente rústica, abrutalhada, pouco amiga da paz.
Tramaram a morte do padre e numa tarde, quando o padre ia pro sítio, atiraram
nele de tocaia. Deixaram o corpo estendido na estrada e desapareceram.
Baltazar foi morto pela policia, em Santa Rita do Sapucaí, quando
atravessava a ponte. Dionisio fugiu para a província de São Paulo. Mas a
justiça divina não falha, o Dionisio ficou morando naquela província e lá não
arranjou família.
Um dia o homem brigou com a mulher e disse que ia fazer com ela o que
tinha feito com o padre em Minas. A polícia, instigada pela mulher, descobre a
coisa e recambia o Dionisio para a nossa cidade. O dia da chegada do
prisioneiro foi tal qual um dia de festa. Toda gente queria ver o homem que tinha
matado o padre-senador. E o homem que havia assassinado a figura mais
importante da cidade voltava velhinho, doente, que dava pena. Dionisio morreu
poucos meses depois de ter voltado para Pouso Alegre.
Dr. Lisboa- “Arma Santa...”
Dos médicos que clinicavam em Pouso Alegre, Camilo lembra de dois: Dr.
José Antonio Freitas Lisboa e Dr. Francisco Silviano de Almeida Brandão.
-Doutô Lisboa era uma arma santa, meu filho. Eu passava quasi que o dia
inteirinho na casa dêle, brincando com seu filho Lulú (Luiz Lisboa, mais tarde
senador estadual, pai do Dr. Antonio de B. Lisboa ainda é vivo e reside em Ouro
Fino).
E o preto Camilo fala demoradamente sobre a bondade do Dr. Lisboa, alma
aberta á caridade, sempre pronto a levar o refrigério da sua ciência e da sua
bondade aos doentes e aos sofredores.
-Me dissero que arrancaram o nome do doutô Lisboa cá da praça e puzero o
nome de outro. Isso é uma ingratidão!
A voz do preto velho tem um tom de protesto. É que o Camilo não consente
que se desrespeite a memória do seu amigo. Volta-lhe a calma quando lhe digo
que a Câmara colocou de novo o nome do Dr. Lisboa na Avenida.
-Bem feito...
O Dr. Silviano Brandão era também um bom moço, caridoso, prestativo. Mas
a política absorveu todas as atividades e o enleiou no seu rodamoinho.
-Dotô Sirviano viro senado, iguar Padre Zé Bento. Dr. Sirviano fez roça
pros negro sê arforriado. A negrada achou bão, mas nêgo veio num fico munto
satisfeito, não...
Um sorriso velhaco enrugou a pele esticada do preto centenário.
Mons. José Paulino
Camilo Felizardo tem palavras de saudade para a memória do Mons. José
Paulino. Tanta bondade existia naquela alma que todos o tinham como santo.
-Padre Zé Paulino era tão santo que D. Néri mando ele pro Ceará, para
indireitá aquele povo que era muito heréje e que tava morrendo de fome. E o
padre custô mas botô as coisas de lá no eixo...
Tempos depois, o Mons. José Paulino voltou do Ceará, acabado pela
moléstia que não demorou muito a levá-lo dentre os vivos.
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Continua a correr o celulóide gravado na memória do
preto-velho Camilo.
Recorda-se da chegada festiva do Sr. Gabriel Osorio de
Almeida, recém-formado pela Escola Politécnica “da Côrte”....
Mudou muito a fisionomia da cidade. Não é a mesma dos
tempos da mocidade do Camilo Felizardo.
-A cidade de hoje pode tá mais importante, mas nunca
que é mais bonita que a outra. Tá carçada de pedra, cheia de barúio de
cmainhão, otomóve e charrete, mas os home são doferente pra piór...
Naquele tempo, as portas das casa tava sempre
escancarada, nêgo veio ia até a cosinha, tomava seu cafesinho, picava uma
lenha, dava um dedo de prosa e saia pelo mesmo lugá que entro. Os home oiava a
gente cum amizade. Hoje, cruz credo, a gente vê a ambição e a mardade nos óio
deles!
Onde é que a gente encontra hoje uma bondade como a do
Dotô Lisboa, do D. Néri, do Padre Zé Paulino?
E, meneando a cabeça.
-A cidade tá importante e mais barulhenta, num hái
dúvida, mas nunca que é mais bonita.
Lá se foi o Camilo Felizardo, arrastando o fardo de
seus 104 anos de existência. Ele conservou sua paixão pela cidade simples, sem
artifícios, só com os enfeites da própria natureza. Os homens do seu tempo
traziam as casas e os corações abertos. Os de hoje trazem a maldade e a ambição
impressas nos olhos duros.
Que Felizardo é esse preto velho que chegou a alcançar
os distantes tempos em que os homens eram bons!
Extraído do Jornal “A Cidade” 19/10/1948, p. 2 e 4
*Escrito como no original
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